sexta-feira, 27 de julho de 2012

O Raimundo e a AIDS ou SIDA

As portas do elevador abriram-se. Eu entrei. Pressionei o botão "T" (térreo) e começamos a descer. O elevador deu um baque atípico e parou no 7º andar. Entraram duas pessoas dando gargalhadas: um homem e uma mulher. Ambos usavam máscaras. Ele usava uma máscara do Sr. Jair Bolsonaro e ela, da Sra. Sarah Palin. As portas fecharam-se e o elevador começou a descer novamente. As duas pessoas que estavam comigo no elevador se recuperam das gargalhadas mas ainda estavam sorrindo uma para a outra e ele falou para ela: "E esse povo ainda acha que os comprimido pra AIDS vai funcionar." Ela falou para ele: "Onde já se viu alguém perder tempo fazendo remédio pra viado aidético" Ele disse: "Eu já te falei, né? Viado, drogado, adúltero e esse povo que toma sangue dos outros é tudo a mesma coisa pra mim. Vale nada!" A conversa exaustiva entre eles continuava e eu consultei o painel de andares. Percebi que nele estava acesa a letra "T". Teoricamente havíamos chegado, porém o elevador ainda continuava a descer. E a conversa entre eles continuava: Ela: "Mas é verdade, Deus não gosta dessa coisa de transfusão, não! Ficar misturando o sangue das pessoa..." Ele: "Pra mim essas pessoas tem que morrer sofrendo." Ela: "É verdade!" Ele: "Na minha época num tinha essas coisa, não. Homem é homem e mulher é mulher." Ela: "Mas tem que ser assim..." Ele: "Nem tinha essa história de misturar sangue, não. Credo! Só de imaginar que alguém que não conheço doando sangue para mim... Pensa euzinho recebendo sangue de viado?!..." As gargalhadas meio histéricas meio efusivas reiniciaram quando as portas do elevador se abriram. Os dois mascarados saíram gargalhando de braços dados. De dentro do elevador eu olhei para fora e percebi que havíamos chegado ao inferno. Encostei-me no portal do elevador e fiquei fitando as enormes labaredas e comecei a pensar. Pensando me lembrei de uma época, a primeira metade dos anos 90 do século passado. Nesse período a AIDS ainda era um tabu em nossas vidas e muitos acreditavam que ela era a "peste gay" enviada por Deus para "desinfetar a humanidade". Causa-me arrepios de lembrar dessas expressões da diretora da escola que eu estudava, proferidas em uma palestra sobre educação sexual. Não havia sido incorporado na sociedade de até então o conceito "comportamento de risco" como causa da contaminação da SIDA (Síndrome da Imuno Deficiência Adquirida). O que estava em voga era o chamado "grupo de risco" o qual englobava os homossexuais masculinos, os usuários de drogas injetáveis e os hemofílicos. Acreditava-se que eles transmitiam a SIDA para as pessoas "direitas e cristãs". Nesse chamado "grupo de risco" havia o grupo preferencial com maior número de incidência que era o dos homossexuais. Isso é fato. Assim esse grupo preferencial passou por um calvário crístico acometido pelos heterossexuais e até mesmo por homossexuais. Pois ninguém tinha informações seguras sobre a SIDA e as reais formas de contágio. Seguiram-se anos de preconceito e injustiças contra os homossexuais. O que ninguém pensou, anos depois quando se passou a evitar o comportamento de risco, é que os homossexuais por terem sido o grupo vítima preferencial da SIDA foi o primeiro grupo a se mobilizar contra ela. Foi o primeiro grupo a partir para o enfrentamento e adotar ações preventivas contra o contágio. Destarte, foram criados duas ONGs importantíssimas para implementar e apoiar ações de combate à AIDS: o GAPA - Grupo de Apoio e Prevenção à AIDS e o Grupo Arco-íris. Anos depois o Governo Federal entendeu a gravidade da problemática e criou um núcleo no Ministério da Saúde para criar e desenvolver políticas públicas contra a DST (Doenças Sexualmente Transmissíveis) e a AIDS, o “DST/AIDS”. Já no ano de 1996, quando eu trabalhei na Divisão de Enfermagem, do Hospital Universitário de Brasília, eu conheci o Raimundo. Raimundo era um homem cego que todo mês participava de uma reunião de um grupo de apoio e era membro do Grupo Arco-Íris. Esse jovem senhor à época era homossexual assumido. Tinha um relacionamento fixo porém era traído e não sabia. Em suas palavras: “Eu confiava nele, ele é que não confiou no meu amor por ele.” Referindo-se ao seu ex-companheiro que havia morrido anos antes, em consequência da SIDA. Raimundo tomava o coquetel (AZT, 3TC etc...) e estava cego. Segundo ele, todos achavam que era por causa da SIDA mas não era. Ele havia perdido a visão devido ao choque de saber que no mesmo dia havia perdido o emprego, a casa, seu namorado e que tinha ganhado uma doença que era tenebrosa naqueles anos, devido à desinformação e preconceito. Este foi que o deixou cego e sem cabelos, contou-me. O “Rai” dos anos 80, trabalhava no salão de beleza do seu “ex”, era gerente. Morava na casa que havia comprado e que tinha ficado no nome do outro. Sem mais nem menos o seu até então parceiro havia terminado com ele e lhe tirado o chão dos pés. A notícia das traições e do contágio com a SIDA veio junto e foi confirmada no Rai meses depois por meio de exames específicos. Esse protagonista nosso, como foi dito, era membro do Grupo Arco-Íris e dirigia um grupo de apoio no referido hospital, para portadores do vírus HIV. Para ele era o melhor dia da semana. Ajudar quem estava pior que ele, como dizia. “Minha dor não é nada perto dos depoimentos que ouço no grupo. A gente pensa que sofre muito mas quando ouve histórias que eu ouço eu vejo que comigo poderia ter sido pior ainda!”. Foi muito bom ter conhecido o Sr. Raimundo. Esse é um RESILIENTE ANDANTE digno de nota. Um exemplo para quem souber pegar para si esse exemplo.